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Crônica - O Velho Mercado

por Raimundo Pompe Magalhães

A iluminação na cidade que era gerada por um barulhento motor a diesel, era desligada no dia anterior, por volta das vinte e duas horas. A noite já havia iniciado sua despedida e na madrugada escura, caminhantes cruzavam com os boêmios em mancebias e bêbados de plantão. Gente vinha de todas as direções, mas o rumo era o mesmo. Todos iam com destino ao Mercado Público, onde a vida na cidade começava muito cedo.

Ainda o quebrar da barra não se pronunciara; o dia ainda nem amanhecia de todo e a sonoridade do canto dos pássaros do alto dos Ficus e Tamarindeiros ao redor do antigo mercado entoavam o seu canto mavioso, e entre o gorjeio dos bem-te-vis e pardais a Granja acordava nas suas primeiras horas, movimentada por seus citadinos que iniciavam o cotidiano nos diversos tipos de trabalho e variados ramos de atividades comerciais.

Mal amanhecia o dia e de longe, em meio ao latido dos cães que constantemente se engalfinhavam em briga, com direito aos latidos histéricos, ouvia-se os gritos dos talhadores de carne fazendo seus pregões e o sons dos seus machados e facões brandindo nos sangrentos cepos de madeira. Antonio Gago, Joaquim de Maria, Zé Mendes e seu irmão caçula Néo Mendes e ainda os filhos Antonio e Chico Mendes, sujeito alto, forte e altivo no falar, eram também marchantes populares. “Seu” Inácio Serrote, que também era parteiro por vocação, foi o intendente de lá um tempo imenso. Quase vitalício. Envergava ele uma farda de cáqui, com botões dourados que muito lhe assemelhava a um milico do exército. Com autoridade, timbrava, sempre, em manter a ordem ali. Quando ouvia dos consumidores prejudicados, resmungos e reclamações das “Filizolas” que pesavam mal, logo fazia a aferição nas balanças, sob pena de multa. Para ele, um quilo de carne, de fígado do boi, tinha que pesar exatos mil gramas.

A carne e o peixe eram transportados na palha da carnaúba, que en­fiada ao dedo do carregador ou em sextas de palha. Chamava-me atenção as galinhas, capões e os capotes expostos à venda. Muito bem-vindos eram também os vendedores de raízes de plantas medicinais que credenciavam nossa farmacologia e traziam uma farmacopeia excelente para curas nos diversos ramos da medicina.

Os vendedores de pão, carregavam no ombro uma enorme cestões de cipó trazendo pão quentinho. As roscas eram condicionadas em grandes sacos de tecido murim alvejado. Numa bacia de alumínio de grande circunferência, assentada sobre uma rodilha colocada sobre a cabeça, as vendedoras traziam bolinhos de goma, broas, suspiros. Nos portão principal ficavam os vendedores de tapiocas de goma fresca, expostas em tabuleiros, que eram vendidos para o reforço do café-da-manhã nas diversas residências.

As manhãs hibernais nas épocas do inverno eram muito farta. Muito leite puro, grosso, sem mistura, sem batismo de água. O precioso líquido que era retalhado no varejo, espumava na cuia, transvasando por um funil de flande ate o recipiente do comprador.

Bem cedo chegavam os comboios de jumentos de carga vindos de várias paragens do interior. Ficavam amarrados nos pés de fícus e tamarindeiros que arborizavam a cidade. Traziam nos grajais uma ruma de melancia, espigas de milho verde, jerimum caboclo, maxixe e “atas”. As mais apreciadas vinham do Pitimbú. Havia muitas galinhas, capões e capotes gordos, expostos à venda nos portões largos da entrada do Mercado.

Por estes mesmo portões entravam os pescadores trazendo suspenso no ombro por um calão, imensas cambadas de peixe de água doce, capturados nas tapagens em redes de malhadeiras, no rio Coreaú. Os próprios pescadores se encarregavam de negociar p quilo do produto. Era peixe de todo tamanho e espécie: traíra, cará, piau e bagre. Nos fins d’agua, espetáculo soberbo era se avistar as imensas cambadas de cangati, de todo tamanho, chegando de ruma, nas carroças. Era um desperdício, dando-se uma cambada a quem comprava outra. Até apodrecia. Coisas do outro tempo!

Havia também meninos vendendo piaba, pescada no remanso dos riachos. Eram alva como jaspe. O prato custava “dois contos”. Da “maré”, onde a água doce do rio se une à salgada, vinham os meninos trazendo muito caranguejo, siri e ostra, que se dizia ser nutritivo.

No interior do Mercado, as cafezeiras eram figuras mar­cantes. Suas tapiocas quentinhas e o cheirinho de café aromati­zava o ambiente. Poucos odores se igualam, e talvez nenhum superava o cheiro do café torrado com rapadura e pisado no pilão que exalava das vendinhas de comida. Sobre a chapa dos seus fogões de lenha, o liquido caia do coador fumegante, aromatizando o ambiente, pelo menos enquanto durava a milagrosa transformação de água e pó em café. As “bancas de comidas” do Macáro, do Assis Beição e da Raimunda do Abel os fregueses comiam tapiocas quentinha, toras de bolos de milho, grude, pamonha e fartos pedaços de queijo. A coalhada era servida em pratos fundos e as “taiadas” de jerimum de leite, como eles diziam, eram “garantidas” .

A comida da Etelvina Mendes era deveras agradável. As pessoas se sentiam atraídas pelo cheiro e sabor da carapeba assada, com baião de dois, da sua suculenta peixada de camurupim, fresquinho, feito no leite de côco com batata inglesa. Na sua “banca” de comida não se falava em “tiquim”, nesga. A comida era farta. Tinha comida de montão. Era um “baita” almoço. Dez, onze pessoas na mesa, comida pra vinte. Tinha ainda sarapatel, fuçura, carne de criação, de boi, assada, pato gordo com arroz, servido na mesa comprida, em fila, se derramando de comida. Todo este estrupício de comida era consumido em diversificada conversação, onde negócios eram concretizados, informações eram trocadas, brincadeiras intensificadas com ânimo de espicaçar alguém, alvo dos chistes em moda.

Juntos as vendas de comidas ficavam as dezenas de bodegas. Vendiam de tudo: Legumes, cereais, fumo de rolo, lamparinas, gaiolas, ratoeiras, peneiras, abanos e chapéus de palha, espanador, bilhas, alguidares e potes do puro barro, de tudo isso exposto nos alpendres, e também cachaça. A bodega do João Menezes e do Antônio Rodolfo e do Fransquim Fonseca eram as que viviam mais cheias de fregueses. Nem aquele tradicional azedume, comum nos ambientes de pouco asseio, espantava os fregueses e consumidores. Alguns comerciantes vendiam a velha “serrana”. Às vezes a atmosfera ficava carregada, por isso era comum a Polícia descarregar a chibata em cima dos comboieiros areentos, metidos a bêsta, cheios de empáfia, que apareciam por lá.

Quando vejo hoje o velho Mercado ocupado por outras caras, diferentes, relembro os antigos comerciantes que por ali passaram. Ainda me lembro do comércio do Vicente da Terezinha, ao lado do portão principal, bem em frente a Praça. No seu estabelecimento de bricabraque, ele vendia e comprava de tudo. Do novo ou que já fosse usado. Martelos, serrotes, relógio de pulso ou de parede, machados, facões e até ratoeiras. “Seu” Vicente era um cidadão exemplar e profundamente cortes. Reverenciava respeitosamente a todos com inclinação da cabeça e cerviz, no modelo da gentileza nipônica. Profundamente religioso, nas procissões, marchava ele cingindo as alfaias roxas da Irmandade do Santíssimo. Seu irmão Antonio, que por sinal não era nada católico, também possuía comércio por lá. Vendia ferragens e alumínios.

Em tempos mais distantes passaram pelo Mercado o Sebastião Dias, o Benedito da Emília, Sabino Brandão, João Teixeira, Cazuza Coutinho, os irmãos Zeca e Totonho Marinheiro e o Chagas Ubatuba, sujeito inteligente, espirituoso, dono de verve especialíssima e cheio de lérias, autor de versos e prosas irônicos. Também teve comércio lá o Justo Evangelista, que acumulava esta atividade com o cargo de delegado de policia da Cidade.

Na esquina do lado do poente funcionava a Farmácia do Paricá, homem habilitado na manipulação de elixis, xaropes, pós, bálsamos e outros agentes terapêuticos da farmacopeia homeopata. Ao lado ficava o comércio do Zé Pedro de Melo, homem distinto, educado que costumava dar “bom dia” e bom tarde” aos seus fregueses.

Júlio Angelim e seu irmão Antonio
Angelim também tiveram comércio no velho mercado. Júlio era dono de sapataria e seu irmão Antonio comercializava tecidos, gravatas, lenços e meias e chapéu de massa, da famosa marca “Pada”. Seus linhos acetinados, seda e morins vestiram por muitos anos a sociedade granjense. Depois vieram as lojas de tecidos do Expedito Coutinho e do Melquíades, que era símbolo de distinção na cidade por vestir na moda as pessoas que gostavam de andar elegantemente vestidas. Em “tempos modernos” costumavam promover sugestivos “queimas”. Flávio Rocha e o Jeová Gouveia também foram comerciantes conceituados ali.

Como estas, há muitas narrativas e recordações associadas aos acontecimentos, ao movimento dos frequentadores, vendedores e comerciantes no Mercado e em torno dele. Em cada canto ele deixou visões do tempo que passou e, agora coloca em redoma emoldurada por imorredouras lembranças.

Com alegres e tristes lembranças, ontem passei pelo velho no Mercado e lembrei quantas vidas se passaram ali, naquela apoteose de abundância. Relembrei os antigos carreteiros, pessoas humildes que trabalhavam diariamente, carregando na cabeça pesadas sacas que vinham da safra, trazida em comboios de jumentos. Quantos e quantos passaram, em constante vai-e-vem, por aqueles largos portões, como se passassem pelos portões de uma cidadela.

Guardo nítidas lembranças dos carreteiros do meu tempo de criança. “Seu” Vicente da Libanha, João Gonçalo, Venceslau, Primeiro de Abril, Manuel Caetano, Zé Morcego. O Pompeu era forte, musculoso e alto. Media a altura do Zé Morcego. Cada uma deles exibia na parte frontal do seu chapéu uma chapa de latão contendo número do seu registro na Prefeitura.

É. Como eu, há muita gente a armazenar na retina a topografia do velho Mercado. Há! Como tudo é tão diferente hoje em dia. Tudo hoje é lembrança de um tempo já não tão distante. És o suficiente para dizer que do passado ficou a indelével recordação que o tempo não enrugou e conservou a beleza de poder recordar sem envelhecer a memória. Desse roubo da vida, restou a agradável lembrança que não se desfaz, embora sintamos o perpassar que se manifesta, mantemos a sublime ventura de manter vivos os movimentos que embalaram várias vidas que por ali passaram.

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